Outubro é mês das Crianças, mas infelizmente muitas não tem a sorte de comemorar. É preciso aproveitar a data para se conscientizar e mudar a realidade brasileira, na qual 11 crianças em média são agredidas ou negligenciadas por hora – números que aumentaram ainda mais por conta da pandemia. Especialistas confirmam que, sem a escola, muitos casos de violência não são notificados e crianças ficaram ainda mais vulneráveis.

Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece que é preciso “garantir às crianças e ao adolescente, a promoção da saúde e a prevenção de agravos, tornando obrigatória a identificação e a denúncia de violência”, grande parte dos casos são subnotificados porque a violência acontece dentro do que seria um lar. E embora o Estado tenha hoje, mais instrumentos legais de proteção nas situações de violência na infância e na adolescência, o “inimigo” dorme em casa.

Nos últimos 10 anos, cerca de 2 mil crianças com menos de 4 anos morreram vítimas de agressão no Brasil, segundo a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria). No período de janeiro de 2010 a agosto de 2020, 103,149 mil crianças e adolescentes de até 19 anos de idade morreram vítimas de agressões no Brasil – as mais atingidas pela violência são exatamente as crianças menores de 6 anos.

São números que não podem ser ignorados. Ao contrário. É mais que um sinal de alerta. Não se trata de exagero da mídia. A impressão que se tem é que todo dia o noticiário tem uma tragédia com alguma criança. Mas não é só impressão, os dados mostram um aumento real da violência contra os pequenos durante a pandemia. O Disque 100, serviço de denúncias do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, registrou 95.247 denúncias em 2020 contra 86.800 em 2019. Este é o maior patamar desde 2013. A maior parte delas relacionada à negligência.

A maior parte das agressões acontece no ambiente familiar, o que dificulta que sejam identificados. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 60% das agressões acontecem dentro de casa. “Sempre teve um número alto de subnotificação e com essa hiperconvivência essa situação de violência fica ainda mais agravada”, destaca a coordenadora de Desenvolvimento Institucional do Itaú Social, Milena Duarte.

Este foi o caso do menino Carlinhos – Carlos Henrique Santos do Carmo- de apenas 7 anos e que foi barbaramente torturado até a morte em Avaré, pelo padrasto Dione Teixeira dos Reis – e ao que tudo indica, com sapiência da mãe, Sara Santos da Fonseca. O irmão de Carlinhos, de 10 anos, também sofreu tortura. O padrasto e a mãe estão presos, mas isso não ameniza o choque e a comoção da morte do menino que veio apenas passar as férias com a mãe.

 

Os tipos de violênciaDe acordo com a SBP, a maior parte dos registros de maus-tratos são de violência física, seguido de violência psicológica e de tortura. Mas outro tipo de violência acaba fugindo dos registros: a sexual. Segundo dados da FIA-RJ esta é a maior violência que atinge os pequenos. E o mais preocupante: a maior parte dos agressores são os próprios pais ou pessoas próximas. Segundo levantamento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.

Porém, os registros tiveram queda em 2020. No período de maior confinamento, em abril, houve uma redução que chegou a 19%, segundo a ONDH. “Historicamente, os registros de estupro de vulnerável vem aumentando ano a ano. O que não significa um aumento da violência e sim mostra que está tendo mais notificação. Mas na pandemia você tem uma queda. Isso porque as crianças estão em casa e é em espaços públicos, como a escola, que essas violências são identificadas”, destaca Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que trabalha no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes.

Por isso é tão importante ficar atento aos sinais que a criança pode apresentar. Segundo Milena Duarte são eles que irão demonstrar se a criança está sofrendo algum tipo de violência. “As crianças dão alguns sinais. Ela muda o comportamento, demonstra tristeza, choro, falta de concentração”, explica.

No contexto de pandemia (ou pós-pandemia) , o papel da escola para identificar estes casos fica ainda mais evidente. “Nesse contexto fica ainda mais delicado, porque a escola e as organizações perdem esse vínculo com essas famílias”, destaca Milena. “A escola tem um papel fundamental de prevenir e proporcionar conhecimento para que essas crianças possam estar protegidas. A escola é quem consegue chegar a mais crianças”, completa.

Este papel é tão importante que o Instituto Liberta fez uma parceria com a Secretaria de Educação de São Paulo com atividades on-line em que as crianças participavam de brincadeiras e uma inteligência artificial identificava quais crianças estavam mais tristes. Com isso, o robô perguntava se a criança queria falar com um adulto. E em uma conversa pelo chat foi possível identificar 200 casos de violência, sendo 53 de violência sexual em nove meses.

No combate a essas violências, outro importante papel é o desempenhado pelos conselhos tutelares. “Nesse contexto de pandemia ele tornou a prática dos conselheiros ainda mais complexa, aliado a isso a gente percebeu que os conselheiros, assim como a rede de proteção, sofreram de forma mais intensa com a queda dos registros”, destaca o professor Humberto Miranda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Ele foi um dos pesquisadores por trás do estudo Violências sexuais contra crianças e adolescentes em tempos de pandemia por Covid-19, desenvolvido em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ele também pontua o impacto negativo que teve a falta de aulas presenciais neste período. “Diminuiu os registros, mas isso não quer dizer que a violência tenha diminuído nesse contexto de isolamento social. Com as escolas não estando funcionando, compromete a visibilidade do problema. Já é uma cultura de registro precarizada que ainda ficou mais grave”, ressalta.

Segundo ele, o estudo constatou a necessidade de um maior investimento nos conselhos tutelares e nas escolas. “Falta de investimento e de informação é um problema. As plataformas de registro não são articuladas em rede. É por meio dos registros que as políticas são articuladas. É preciso uma formação continuada da rede de proteção”, afirma.

O pesquisador também destaca que percebeu que muitos conselheiros ainda estão tomados por preconceitos, o que compromete o trabalho. “É muito comum a rede de proteção falar que foi culpa da menina. Isso é muito sério. A questão da violência sexual não é uma questão de fé, é uma questão que deve ser debatida a luz da política pública”, diz.

O que é considerado violência infantil?

A violência contra crianças e adolescentes pode surgir de diferentes formas:

  • Negligência e abandono, com situações como descuido, desamparo, desresponsabilização e descompromisso do cuidado; bem como recusa ou omissão por parte de pais, responsáveis ou instituição em prover as necessidades físicas, de saúde, educacionais, higiênicas da criança.
  • Pornografia infantil, sendo qualquer envolvimento da criança em atividades sexuais explícitas reais ou simuladas, ou qualquer representação/fotografia dos órgãos sexuais de uma criança para fins de apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação ou internet.
  • Tortura, que ocorre quando há atos intencionais para causar lesões físicas, ou mentais, ou de ambas as naturezas com finalidade de obter determinada vantagem, informação, aplicar castigo, entre outros.
  • Trabalho infantil, caracterizado por todo o trabalho realizado por pessoas que tenham menos da idade mínima permitida para trabalhar. No Brasil, o trabalho não é permitido sob qualquer condição para crianças e adolescentes até 14 anos. Adolescentes entre 14 e 16 podem trabalhar, mas na condição de aprendizes.
  • Tráfico de crianças e adolescentes, caracterizado pelo recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de crianças e adolescentes, recorrendo à ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade para fins de exploração sexual, trabalho Infantil ou tráfico de órgãos.
  • Violência física, que pode ocorrer por meio de agressão física traduzida em marcas visíveis ou não; no caso de marcas visíveis, a violência resulta em lesões, ferimentos, fraturas, hematomas, mutilações e em alguns casos morte.
  • Violência psicológica, praticada por pais ou responsáveis através de agressões verbais, ameaças, humilhações, desvalorização, estigmatização, desqualificação, rejeição e isolamento, ocasionando imensuráveis danos emocionais e sofrimento psíquico.
  • Violência sexual, caracterizada por meio de abuso ou de exploração sexual de crianças e adolescentes, mediada ou não por força ou vantagem financeira. Também pode ocorrer por meio da oferta financeira, de favores ou presentes, independente do valor e natureza – podendo até ser um prato de comida.
  • Aliciamento sexual de menores, que pode ocorrer de forma online ou não, levando à criança ou adolescentes a situações de violência sexual ou pornografia infantil.
  • Bullying e cyberbullying, caracterizado pelo ato de bater, zombar, ridicularizar, colocar apelidos humilhantes e etc., em outras crianças e adolescentes, seja online ou não. Essa violência é praticada por um ou mais indivíduos, com o objetivo de intimidar, humilhar ou agredir fisicamente a vítima. Acontece muitas vezes nas escolas.
  • Exposição de nudez sem consentimento (sexting), discriminação, adoção ilegal e violência patrimonial também são situações de violência que podem acometer uma criança.

 

(Matéria veiculada na edição 242 – Fontes SBP, Child Hood Org, Ministério da Saúde e Agência Brasil)