Você já deve ter ouvido falar em modernidade líquida ou mundo líquido. O termo foi cunhado pelo sociólogo polonês  Zygmunt Bauman. Teorizado e especificado em dezenas de livros, em poucas palavras o termo trata das breves relações que o mundo moderno propõe (ou impõe, para os mais radicais). Tudo parece difícil de solidificar, desde a sua marca até o amor. Grosso modo, na visão de Bauman nada seria mais concreto; tudo seria constantemente mutável – o que não é nenhuma novidade. Mas ele foi além em seus estudos analisando o contexto atual que vivenciamos.

“Vivemos um tempo em que estamos constantemente correndo atrás. O que ninguém sabe é correndo atrás de quê”. A frase é do próprio Bauman e reflete a instabilidade e mutabilidade que ele enxergava na sociedade pós-moderna. Falecido em 2017, aos 91 anos, Bauman deixou uma obra com mais de 50 livros publicados, além de inúmeros artigos. Crítico da sociedade contemporânea, seu trabalho se tornou amplamente conhecido e premiado, transformando-o em um dos pensadores mais renomados da atualidade e por vezes, já foi e é tema de vestibulares e de Enem.

Anticapitalista e antiglobalização, buscando entender os processos sociais da sociedade moderna, ele tratava questões sobre as relações humanas e suas transformações. Individualidade, amor, consumo, redes sociais, desigualdade social, entre outros, são alguns dos temas que marcaram sua obra. Apesar da fama de pessimista na forma com que observava o espírito do tempo, seu trabalho alcançou não só o meio acadêmico, mas também fora deste círculo.

Bauman, ao olhar para o mundo, partia do ideal de que a condição humana deve ser tratada em seu valor ético e humanitário. Preocupado em falar sobre a ‘cegueira moral’ e despertar as pessoas da indiferença aos problemas sociais, era um assíduo questionador dos governos neoliberais que incentivam o capitalismo e deixam de lado suas responsabilidades com a justiça social.

Sua crítica ao mundo pós-moderno popularizou-se através da expressão ‘modernidade líquida’. “Escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”, dizia. Inconstante e facilmente modificada, fluída como líquido, foi assim que Bauman caracterizou a sociedade e as relações atuais. Para ele, a instabilidade da economia, as novas tecnologias, o medo que se reproduz na sociedade e o espaço público passando a ser ocupado pelo consumo acabam por nos deixar inseguros frente às tentativas de nos inserirmos nos padrões sociais. Estes, por sua vez, também seguem em constante transformação.

Hoje, o pensamento de Bauman está presente quando a sociedade pós-moderna é tomada pela incerteza do futuro. Com seu ceticismo, o sociólogo já alertava para os riscos da expansão dos governos populistas como preenchimento de um espaço causado pela perda de confiança na política e pela crise democrática. “As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas”, enunciava.

Dois anos após sua morte, seu legado é cada vez mais um retrato da vida cotidiana, uma vez que a modernização do mundo de hoje faz com que nada dure muito tempo, sempre há necessidade de mudança; há necessidade de dissolver tudo que é sólido. Já dizia Bauman: “vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar”. Em meio ao derramamento de conceitos e relações, sua obra permanece.

Segundo seus conceitos, é o indivíduo que moldará a sociedade à sua personalidade. Primeiro, sem os parâmetros da modernidade sólida, ele será definido pelo seu estilo de vida, por aquilo que ele consome e o modo que consome. Segundo, haverá sempre movimentação. As pessoas agora se deslocam mais facilmente e podem viver em vários lugares do mundo, sempre quando têm recursos. Terceiro, a competição econômica, que fez os salários diminuírem e os trabalhadores perderem a segurança do emprego. Na modernidade líquida, já não é mais possível trabalhar toda vida na mesma empresa.

Desta forma, para Bauman a realidade é “fluída, sempre em movimento e imprevisível”. Mas como esta volatilidade impacta em nossa vida? “A modernidade líquida nos dá uma sensação de fracasso por tanta fragmentação” argumentava o sociólogo. Por isso, uma questão muito importante para ele era a construção de uma ética dentro desse cenário fluido. Bauman utilizava a metáfora da liquidez para fazer um contraponto com os tempos da certeza que seriam identificados pelo estado sólido. Na modernidade sólida, as instituições eram firmes, existia a segurança no trabalho e um salário que permitia ao indivíduo viver com dignidade.

Com isto, se construiu um sistema baseado na racionalidade, onde era importante que o indivíduo se adequasse à sociedade onde estava inserido. A religião e o nacionalismo davam um sentido para a comunidade e um sentimento de pertencimento. Assim, o ser humano construía sua identidade a partir dessas referências. Contudo, uma mudança nos anos 60 e 70 começou a enfraquecer as instituições que forneciam as claves para o indivíduo construir sua identidade como as crenças religiosas, a família e a escola. Devido à concorrência dos mercados e ao aumento da competitividade, o indivíduo deixou de ter certezas. Desta maneira, todas aquelas verdades que a modernidade sólida tinha como imutáveis são questionadas. Por isso, na modernidade líquida, esses conceitos estão em permanente adaptação, pois se adaptam ao meio onde estão inseridos. Sem referências externas e numa sociedade onde tudo é permitido (ao menos em teoria), os indivíduos tem que construir sua identidade a partir da sua experiência pessoal. Isso gera a angústia e o desconforto já preconizados por Jean-Paul Sartre, mas também uma sensação de liberdade, onde o indivíduo tem a responsabilidade total dos seus atos.

Que mundo é esse? 

 

 

No conceito modernidade líquida, nada é feito para durar, para ser “sólido”. Disso resultariam, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranóia com segurança e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E cada um por si. “Nossos ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’, se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: ‘progresso’, para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração”, afirmava Bauman.  O sociólogo chegou a classificar o amor de líquido também. “ Amor líquido é um amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem ainda mais satisfação.Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade”.

Para o sociólogo, ambos os tipos de relacionamento têm suas próprias vantagens e riscos. Em um mundo “líquido”, em rápida mutação, “compromissos para a vida” podem se revelar como sendo promessas que não podem ser cumpridas, na visão de Bauman. “O legado do passado, afinal, é a restrição mais grave que a vida pode impor à liberdade de escolha. Mas, por outro lado, como se pode lutar contra as adversidades do destino sozinho, sem a ajuda de amigos fiéis e dedicados, sem um companheiro de vida, pronto para compartilhar os altos e baixos? Nenhuma das duas variedades de relação é infalível. Mas a vida também não o é. Além disso, o valor de um relacionamento é medido não só pelo que ele oferece a você, mas também pelo que oferece aos seus parceiros. O melhor relacionamento imaginável é aquele em que ambos os parceiros praticam essa verdade”.

Numa de suas últimas entrevistas quando esteve no Brasil, ele deixou um recado aos jovens: “Desejo que percebam razoavelmente cedo que há tanto significado na vida quando eles conseguem adicionar isso a ela através de esforço e dedicação. Que a árdua tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos”.

 

(Fontes BBC, Reuters, Veja e IstoÉ)