Cem anos depois, a Semana de Arte de 1922 continua sendo símbolo da modernidade do país no início do século 20, com uma influência que extravasou diferentes campos, assim como permeou movimentos de contracultura, como a Tropicália. Tendo o centenário como foco, muito se falou sobre o legado do movimento que influenciou completamente a arte e a cultura brasileira.
“Mais do que abrir movimentos artísticos nomeáveis, arriscaria dizer que o principal legado da Semana de 22 foi, além de introduzir na nossa cultura a contribuição dos povos originários e do legado afrodiaspórico, apresentar o conceito antropofágico (movimento criado por Oswald de Andrade, cujo objetivo era “devorar” a cultura enriquecida por técnicas importadas e promover uma renovação na arte brasileira) como nossa condição antológica”, afirma Carlos Eduardo Félix, artista plástico e professor do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio.
“Sem dúvida o principal legado no mundo das artes plásticas foi a ruptura com a construção clássica, deixar o modelo clássico como referência e o olhar e registrar o Brasil tal qual é, suas cores, suas formas, seus grupos étnicos. Muitos artistas abriram mão dos conceitos estabelecidos pelas escolas acadêmicas e passaram a produzir uma arte que explorava uma paleta de cores mais densa. Ademais, as obras adquiriram um significado maior pela sua plasticidade e não somente pelo seu conteúdo. Na literatura, houve uma produção moderna mais expressiva e menos construída a partir de padrões. Na música, os sons da nossa natureza foram explorados, bem como dos grupos que aqui chegaram e construíram o novo a partir da hibridização”, comenta a professora Débora Gigli, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
“O pós Semana de Arte foi bastante relevante, pois, a partir daí, muitos artistas aderiram às ideias modernistas e iniciaram seus projetos intelectuais nesse contexto. Mário de Andrade, por exemplo, viajou pelo Nordeste brasileiro recolhendo músicas e manifestações folclóricas, algo inédito até então. Di Cavalcanti trouxe uma visão mais política da sua obra, Villa-Lobos, na música, lançou uma série de composições chamada Choros, muito inspirada por músicas populares brasileiras. Todas estas mudanças geraram reflexo em autores de outras décadas, como Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado, enfim, autores da década de 1930 e 1940, que eram de uma geração mais nova. Na década de 1960, a Tropicália e o Cinema Novo também buscaram inspiração no Modernismo com a defesa de uma cultura nacional, desta vez utilizando a cultura de massa”, reforça a professora Anelize Vergara.
Marco oficial do Modernismo brasileiro, a Semana de Arte Moderna aconteceu em São Paulo e reuniu artistas das mais diversas áreas no Theatro Municipal de São Paulo ao longo dos dias 13 e 18 de fevereiro de 1922. Apresentações musicais e conferências intercalavam-se às exposições de escultura, pintura e arquitetura, com o intuito de introduzir ao cenário brasileiro as mais novas tendências da arte.
Influenciados pelas vanguardas europeias e pela renovação geral no panorama da arte ocidental, esses escritores, pintores, escultores, intelectuais e músicos uniram seus esforços para apresentar suas produções ao grande público. Reunião das tendências estéticas que tomavam forma em São Paulo e no Rio de Janeiro desde o início do século, a Semana de Arte Moderna também revelou novos grupos, novos artistas, novas publicações, tornando a arte moderna uma realidade cultural no Brasil.
Contexto histórico – Até o início do século XX, a escola artística tida como oficial no Brasil era o Parnasianismo. Caracterizado pelo rigor formal (preocupação com a forma do poema no que se refere à metrificação), pela proposta da “arte pela arte” e pelo academicismo e elevada erudição, o Parnasianismo havia sido a tendência estética dominante até então, especialmente na poesia, figurando em textos oficiais, como o Hino Nacional Brasileiro.
Como a grande maioria das escolas estéticas, o Parnasianismo foi importado da Europa. No continente europeu, contudo, vigorava outra proposta artística. As grandes reviravoltas da Revolução Industrial haviam instituído uma nova maneira de viver, modificando completamente as relações humanas. A luz elétrica e a rapidez dos automóveis e das produções fabris em larga escala transformaram a sociedade.
O advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a destruição mortífera causada por ela também influenciaram social e filosoficamente os artistas do período. O início do século XX trouxe inúmeras mudanças ao modo de viver europeu; a arte, portanto, precisava acompanhar essas mudanças. Vinham à tona as vanguardas artísticas e, com elas, a consolidação da modernidade no âmbito da arte.
O Brasil, por sua vez, também começava a se modernizar. As primeiras indústrias começavam a se instalar na cidade de São Paulo, e a produção de café do interior paulista gerava grandiosa receita de exportação, transformando o estado em novo centro econômico brasileiro. Por esse motivo, a capital paulista foi o palco dos eventos da Semana de Arte Moderna, que contou com o patrocínio de diversos membros da burguesia industrial que ali se consolidava.
Além disso, 1922 foi o centenário da Independência do Brasil. Assim, o cenário era ideal para a renovação artística nacional, e esse foi um dos motes da Semana: a atualização intelectual da consciência nacional. O Brasil, que se transformava e se modernizava, precisava de um novo olhar artístico, sociocultural e filosófico que propusesse uma arte nacional original e atualizada, trazendo consigo um pensamento a respeito dos problemas brasileiros e da variedade cultural que se estendia por nosso vasto território.
Predecessora importante da Semana foi a Exposição de Pintura Moderna – Anita Malfatti, que ocorreu em 1917, também em São Paulo. Cinquenta e três obras da pintora foram apresentadas ao lado de obras de artistas internacionais ligados às vanguardas europeias. As telas impressionaram nomes que liderariam, depois, a Semana, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Di Cavalcanti. A exposição também causou grande desaprovação da crítica conservadora, em especial Monteiro Lobato, que publicou uma crítica extremamente negativa, intitulada “Paranoia ou mistificação?”. Com traços expressionistas, Malfatti trouxe ao Brasil uma nova estética, em exposição considerada o primeiro “estopim” para a idealização da Semana.
As novas tendências que floresciam com as vanguardas, grande período de experimentação do início do século XX, deram aos artistas brasileiros a possibilidade de trabalhar com novas linguagens, novos materiais e novas propostas, a fim de renovar a arte nacional. Mas, diferente do Parnasianismo, não houve uma incorporação completa dessas estéticas – não se importou para o Brasil o cubismo ou o expressionismo em busca de se desenvolver aqui uma escola análoga.
Os artistas que iniciaram o Modernismo brasileiro aproveitaram-se desses novos procedimentos e técnicas, desse rompimento com o academicismo, para reelaborar o cenário artístico nacional. “O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional.”
Graça Aranha, que à época já era um aclamado escritor e intelectual brasileiro, fez as honras da abertura do festival, no dia 13, com a conferência intitulada “A emoção estética da arte moderna”. Ele foi ouvido respeitosamente pelo público e declamou versos de Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho, acompanhado de músicas executadas pelo maestro Ernani Braga.
Ainda no dia 13, o já citado poeta Ronald de Carvalho esteve à frente de sua própria conferência, de nome “A pintura e a escultura moderna no Brasil”, seguida de três solos de piano de Ernani Braga e três danças africanas de Villa-Lobos – compositor, aliás, tachado na ocasião de “talento ainda não cultivado o bastante”, por sua música “Privada de bom senso” e “Puramente africana”.
O dia 15 de fevereiro representou o auge da Semana, nos mais escandalosos termos. A nova literatura provocou irritação e algazarra no público presente. Destacam-se a palestra de Mario de Andrade, cujo texto depois se tornaria a publicação A escrava que não é Isaura, em que o autor defende enfaticamente o abrasileiramento da língua portuguesa, e a conferência sobre a estética moderna proferida por Paulo Menotti del Picchia, que provocou os ânimos da plateia, fazendo ecoar vaias pelos quatro cantos do Theatro. Também nesse dia houve um sarau, que contou com a participação de diversos escritores, que tentavam falar no meio da gritaria da plateia. Nesse dia, Ronald de Carvalho leu o famoso poema “Os Sapos”, de autoria de Manuel Bandeira, que ridicularizava os parnasianos.
Mario de Andrade pronunciou também uma breve palestra, na escadaria interna do Theatro, sobre as obras de pintura. Vinte anos depois, o autor relembrou o episódio na obra O Movimento Modernista, comentando: “Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Theatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?…”. A grande confusão da plateia só se acalmou com as apresentações que encerraram o dia: números de dança de Yvonne Daumerie e o concerto de piano de Guiomar Novais.
O evento de encerramento da Semana foi dedicado à música. Peças de Villa-Lobos foram executadas pelos diversos músicos participantes, com menos ruídos em vaias, mas não sem escapar às críticas ferinas dos conservadores.
Principais artistas da Semana de Arte Moderna de 1922
Arquitetos: Antonio Moya, Georg Przyrembel.
Escritores: Afonso Schmidt, Agenor Barbosa, Álvaro Moreyra, Elysio de Carvalho, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Luiz Aranha, Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Sérgio Millet, Tácito de Almeida.
Escultores: Wilhelm Haarberg, Hildegardo Leão Velloso, Victor Brecheret.
Músicos: Alfredo Gomes, Ernani Braga, Fructuoso Viana, Guiomar Novais, Heitor Villa-Lobos, Lucília Guimarães, Paulina de Ambrósio.
Pintores: Anita Malfatti, Antonio Paim Vieira, Emiliano Di Cavalcanti, Ferrignac, John Graz, Vicente do Rego Monteiro, Yan de Almeida Prado, Zina Aita.
Consequências – Polêmica, confusa, barulhenta, tida como “demasiado festiva” e “pouco moderna”, não se pode negar que a Semana de Arte Moderna de 1922 foi um marco, um divisor de águas no panorama artístico brasileiro. Ela escancarou as portas para uma grande liberdade no que diz respeito à produção e pesquisa estética no país, contribuindo para um florescimento intelectual e artístico. Na visão de Di Cavalcanti, o acontecimento da Semana extrapolou o campo cultural e repercutiu também na área política. A Semana fez o papel de divulgação da arte moderna, que, por sua vez, cultivou o terreno para a consolidação de uma revolução artística e literária que tomou forma após 1922, quando foram lançados os manifestos de Oswald de Andrade e as obras fundamentais do Primeiro Modernismo brasileiro, tais como Macunaíma (Mario de Andrade), Memórias Sentimentais de João Miramar (Oswald de Andrade) e Ritmo Dissoluto (Manuel Bandeira).
(Fontes CNN, Casa Vogue, UOL, Brasil Escola, Arte e Cultura, Mundo da Educação e Revista Galileu)