Na primeira cena de “Tony Manero” somos apresentados à Raul Peralta como um chileno normal que acordou no seu quarto decadente, ele olhou pela janela, saiu pra rua e foi ajudar uma senhorinha a chegar até sua casa. Ele tem uma peculiaridade: é obcecado pelo personagem de John Travolta em “Os Embalos de Sábado à Noite”, vai todos os dias ao cinema ver o filme, sabe de cor os diálogos e o modo de se vestir do personagem, e sonha em ganhar um concurso de dança na TV. Raul quer ser Tony Manero a qualquer custo. Ele parece comum, só à primeira vista, pois logo em seguida descobrimos se tratar de um serial killer que elimina toda e qualquer pessoa que atrapalhe seu plano de ser o sósia do personagem icônico do John Travolta – a grande obsessão da sua vida.
A história do personagem Raul Peralta (vivido com brilhantismo pelo ator Alfredo Castro) se passa em 1977, nos anos da ditadura de Pinochet no Chile e mesmo ano do lançamento de “Os Embalos de Sábado à Noite”, e nela há um ótimo paralelo dos horrores políticos do regime ditatorial com as infinitas tardes na sala de cinema onde ele vê o filme à exaustão – válvula de escape bizarra mas que funciona na prática.
Ao mesmo tempo em que Raul é frio e cruel, é também patético e decadente em suas apresentações no programa de TV, o que, por incrível que pareça, o torna um personagem carismático e até digno de pena, apesar dele ser um matador, sentimos dó dele. Ele tem esse sonho ingênuo que o guia pela vida, uma obsessão dentro de um cenário de terror difícil de escapar.
Raul poderia ser seu colega de trabalho, seu amigo ou vizinho, alguém acima de qualquer suspeita com uma vida triste que o levou a extravasar seu ódio matando friamente. Os disfarces são muitos na trama, tanto do governo Pinochet quanto do psicopata que parece ser um bom homem, ambos monstros que se escondem onde menos esperamos.
Tudo é muito sombrio e melancólico na trama: a vida medíocre das pessoas, a resignação em relação a ela e a opressão do governo militar. O diretor Pablo Larraín ( que dirigiu ‘Jackie” e “Spencer”) imprimiu um tom de ilusão no longa: ele coloca o desvio do protagonista como reflexo da conjuntura sufocante em que vive, a opressão castradora da Ditadura Militar chilena.
“Tony Manero” é um filme de 2008 que foi representante do Chile na disputa por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional; não chegou lá, mas não perdeu seu valor diante de olhos atentos a qualidade. Uma grata surpresa escondida no catálogo da Netflix.