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Dentre as inúmeras espécies de preconceito, talvez o mais doloroso deles seja aquele imposto a si próprio, não se aceitar machuca e desequilibra todas as outras relações. Se você não se aceitar provavelmente ninguém mais irá.

Já de olho nas premiações da temporada de 2022, a Netflix começa a lançar produções diferenciadas e de alta qualidade, e “Identidade” é uma delas. Baseado em “Passing” (também título original do filme), romance de 1929 da escritora Nella Larsen, o longa acompanha as vidas de Clare e Irene, duas mulheres negras nos anos 20 que acreditavam serem felizes em suas vidas, até que um dia se reencontram e esse olhar muda drasticamente.

A história é contada sob o ponto de vista de Irene, que começa a trama no centro de Manhattan fazendo compras em lojas chics, mas morta de medo de ser descoberta como negra, por isso anda  trêmula e cabisbaixa, sempre cobrindo o rosto com a aba do chapéu. Antes de voltar para o Harlem, bairro predominantemente negro, ela encontra casualmente a amiga de infância Clare, que passou boa parte da vida mentindo ser branca pro marido ultra racista (Alexander Skarsgard) e para a sociedade, e por isso mesmo sofrendo a cada minuto da farsa. Há uma tensão sexual entre as amigas, uma atração e também repulsa mútuas, mas tudo fica nas entrelinhas pois não sabemos exatamente o que houve entre elas no passado. Clare decide se reencontrar com a comunidade negra que ela tanto rejeitou, e apesar de Irene se esquivar de todas as formas dessa amizade, para ela basta a convivência esporádica e arriscada.

Ruth Negga e Tessa Thompson estão sensacionais como Clare e Irene: as atuações são discretas mas poderosas nos olhares e sorrisos nervosos que camuflam o desejo que não pode ser verbalizado; e no texto impecável que nos leva ao fundo da psique dessas duas mulheres.

“Identidade” é um filme exclusivamente de personagem. Rebecca Hall (atriz de “Vicky Cristina Barcelona” e “O Grande Truque”), em sua ótima estreia como diretora e roteirista, constrói um discurso anti-racista que diz muito em detalhes sutis, mas brilhantes. O filme é em preto e branco desbotado, os diversos tons de cinzas brincam com o tom da pele dos personagens, deixando-os quase sempre com a mesma cor. Apesar de não mostrar cenas explícitas de confrontos raciais, o filme é violento em seu conteúdo – o ódio de brancos contra negros é escancarado em frases racistas ditas com orgulho por alguns personagens.

Seja nos anos 20 ou agora, cem anos depois, vários questionamentos surgem numa sociedade sempre em mutação, porém com os mesmos preconceitos. Não estaríamos todos fingindo ser algo que não somos? Mais estudados do que somos, mais experientes, mais bonitos, mais felizes? Por que então não se passar por branco para viver melhor numa sociedade onde o racismo ainda é esmagador? A resposta fica para o público.