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A USP cancelou a matrícula de um estudante aprovado em medicina após uma comissão rejeitar a autodeclaração racial em que ele se acordou como pardo. Ex-aluno de escola pública, o jovem descobriu que perdeu a vaga no primeiro dia de aula, na segunda-feira (26).

Alison dos Santos Rodrigues, 18 anos, é de Cerqueira César e foi aluno na escola José Leite. Ele foi aprovado em medicina, curso mais concorrido da USP , com reserva de vagas para candidatos egressos da rede pública e autodeclarados PPIs (pretos, pardos e indígenas).

O estudante afirma que sempre foi identificado como pardo e ficou surpreso quando soube que um banco de heteroidentificação tinha rejeitado sua autodeclaração racial. Esse sistema de verificação foi criado em junho de 2022 e usado pela primeira vez na universidade no ano passado, com o objetivo de coibir fraudes na política de cotas.

“Ele é pardo, nem tem o que discutir.  Família toda e é um aluno o de escola pública”, diz um ex-professor. Alison foi aprovado na primeira chamada pelo Provão Paulista , vestibular seriado criado no ano passado exclusivamente para alunos da rede pública no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). Além de ser o primeiro da família a ser aprovado em uma universidade pública, ele também é o primeiro de sua escola a passar em medicina.

Os professores da escola onde eleestudou chegaram a colocar um outdoor na entrada da cidade para comemorar a aprovação. “Foi um orgulho tão grande para a nossa família, para a escola, para a cidade toda”, conta Laise Mendes dos Santos, 35 anos, tia do jovem.

Após ser aprovado, Alison fez a pré-matrícula virtual na USP, mas, para ter se candidato pelas cotas, precisava comprovar que se encaixava nas condições.

“Nunca imaginamos que ele pudesse sofrer uma violência dessa, de ter a sua cor, a sua identidade questionada. Ele foi aprovado em quatro universidades públicas e em todas concorreu às vagas reservadas para PPIs. Porque é assim que ele sempre se entendeu, como um menino pardo”, diz a tia.

Procurada pela reportagem da Folha de S.Paulo, que veiculou a matéria, a USP afirma que não há mais nenhum recurso institucional disponível. A família de Alison acionou nesta quarta-feira (28) o Ministério Público e tenta um mandato de segurança para garantir sua permanência no curso.

No processo de matrícula, ele mostra os documentos que comprovaram ter frequentado escola pública e duas fotografias. Recebeu um email avisando que a comissão “não logrou confirmar sua autodeclaração de raça/cor” e foi convocado para participar de uma reunião virtual para nova avaliação.

Segundo Alison, o encontro durou pouco mais de um minuto. Não foi feita nenhuma pergunta ao jovem e ele teve apenas que ler sua autodeclaração. No dia seguinte, soube que a comissão foi rejeitada mais uma vez. “A chamada por vídeo não durou nada, não fez pergunta nenhuma. Eles marcaram a reunião às 17h, mas só ligaram para ele às 19h, quando já estava escuro, e ainda reclamaram da qualidade da conexão”, conta a tia.

Alison apresentou recurso. A resposta da instituição só chegou no fim da manhã da última segunda-feira, depois de ele ter participado das atividades de recepção de calouros. “Nós viajamos toda madrugada, com dinheiro que conseguimos em uma vaquinha feita por amigos e vizinhos, para que ele pudesse participar do primeiro dia de aula. Ele estava feliz na atividade, conhecendo os novos colegas”, diz Laise.

A mãe de Alison é auxiliar de serviços gerais em um abrigo para crianças. Sustenta sozinha Alison e a irmã mais nova dele. Ela se identifica como parda, já o pai de Alison é identificado como branco.

“Geneticamente, sou fruto da miscigenação de mãe negra e pai branco e, por ter pai branco, desde criança sempre foi muito claro para mim que não posso ser classificado como branco, já que a cor da minha pele, os traços do meu nariz e dos meus lábios e o tipo do meu cabelo são características que nunca me deixaram em dúvida de que me pareço muito mais com minha mãe e minhas avós maternas, visivelmente negras”, escreveu Alison no recurso que apresentou à universidade.

No documento, ele conta também que a irmã mais nova tem a pele mais clara e que essa diferença já fez com que ele passasse por situações de racismo. “Um menino negro, acompanhado de uma menina branca, mais nova, suscita desconfiança”, escreveu.

Ele ainda argumentou que o entendimento legal do país e usado pelo IBGE é de que pardos são pessoas que se “declaram pardas e possuem miscigenação de raças com predomínio de traços negros”.

Com o recurso negado, Alison tentou ainda um encontro presencial com a banca, mas o pedido foi negado. “Disseram que ele não é especial para ter uma segunda avaliação”, conta Laise. Em nota à Folha , a USP disse que a análise das fotografias dos candidatos é feita por duas bancas de cinco pessoas e é baseada apenas em fatores fenotípicos —ou seja, nas características físicas.

“Caso a foto não seja aprovada por uma das bancas (por maioria simples), ela é direcionada automaticamente para a outra banca. Nenhuma banca sabe se a foto está sendo comprovada pela primeira ou segunda vez, o que garante uma dupla análise cega das fotografias . Ao final do processo, se duas bancas não aprovarem a foto por maioria simples, o candidato é automaticamente chamado para uma oitiva presencial”, diz a nota.

Segundo a universidade, Alison não foi chamado para uma reunião presencial porque foi aprovada pelo Provão Paulista. “Para os candidatos do Enem e do Provão Paulista, foram feitas atividades virtuais, porque muitos desses candidatos moram em lugares muito distantes.”

 

(Fonte Folha de S.Paulo)