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Avaré deu adeus à primeira mulher a entrar no claustro beneditino para recuperar pinturas

 

Gesiel Júnior

Especial para o In Foco

 

Com meio século de experiência em restauração, a artista plástica Nilva Calixto foi sinônimo de paciência, tenacidade e técnica. A sua morte, em 10 de junho de 2022, abriu uma grande lacuna porque o patrimônio da arte brasileira deve a ela o resgate de valiosas peças artísticas, sobretudo sacras, antes deterioradas pelo tempo ou danificadas por amadores sem critério científico.

Dama de formação eclética, esta avareense foi uma profissional reconhecida por seu empenho em serviços de assessoria, prospecção de projetos e execução de restauro de bens culturais.

Discreta, com eficiência, em 1987, Nilva coordenou o restauro do Teatro Municipal de São Paulo, quando aprovou a troca de detalhes artísticos, refez dourações e subiu em andaimes para salvar as pinturas pregadas na abóboda do prédio.

Esse trabalho lhe abriu as portas da igreja de São Bento. Curiosamente, antes dela, não havia notícia de presença feminina na clausura desde a fundação do mosteiro em 1598. Ali, ela delicadamente fez mais de 50 restauros na capela abacial.

A propósito, nessa igreja reservada ao abade, há uma magistral amostra paulistana do estilo ensinado pela tradicional escola alemã de arte Beuron, cuja técnica influenciou as telas de Nilva Calixto. Nesse lugar, a artista recuperou afrescos pintados em 1921 pelo monge holandês Adelbert Grenicht, trazendo novamente à vista as figuras dos arcanjos Miguel e Rafael.

 

Uma arqueóloga vertical

Nilva Calixto acumulou no vasto currículo serviços importantes como o restauro de pinturas murais no restaurante do Patheo do Colégio, de São Paulo; dos painéis coloniais no Sobrado do Porto de Ubatuba e das telas do pintor colonial frei Jesuíno de Monte Carmelo (1792), na igreja Nossa Senhora da Candelária, de Itu.

Em sua vida trabalhosa, munida de bisturis de aço carbono, réguas e lápis, a artista desvendou segredos encobertos sob a crosta de paredes de prédios e monumentos históricos.

Chamada tecnicamente de prospecção, o serviço da restauradora já revelou a originalidade de obras ornamentais ou antigas decorações, como as do Relógio de Sol de Avaré (1958) ou da capela de Sant’Ana, no Mosteiro de São Bento, de Sorocaba, igreja erguida há 350 anos.

“É uma arqueologia vertical”, assim definia Nilva Calixto essa sua delicada tarefa que exigia alto grau de especialização, pois visava reconstituir a decoração primitiva, os desenhos e os traços.

Por amor à arte

Sendo o resultado da mescla das ciências e práticas da arqueologia, química laboratorial, artes plásticas e fotografia científica, o ato do restauro, para Nilva Calixto, consistia na volta da obra artística ao seu estado original, seja ela pintura em tela, escultura em diversos materiais, instalações ou monumentos.

Com sabedoria, paciência e devoção à cultura, ela se desdobrou para recuperar peças valiosas que cederam às intempéries do tempo, obras encontradas muitas vezes em estado tão lastimável que um leigo duvidaria da possibilidade de restaurá-las.

 

Mais sobre a brilhante artista

Nascida em Avaré, filha de pais de origem árabe e italiana, Nilva Leda Calixto estudou na Escola Paulista de Belas Artes e depois fez curso de restauro de obras artísticas em Florença e Nova York e estagiou no Museu de Arte de São Paulo, entre os anos de 1972 e 1974, a convite do diretor Pietro Maria Bardi, quando foi responsável pelo resgate de pinturas de mestres como Renoir, Van Gogh, Di Cavalcanti, Volpi e Portinari.

Em sua terra natal, a especialista lecionou por dez anos nas cadeiras de plástica, história da arte, evolução das técnicas de representação gráfica e desenho artístico na Faculdade de Ciências e Letras da FIRA.

Marcante em sua travessia pela via acadêmica foi a organização, em meados dos anos 1970, de congressos universitários de história em quadrinhos, eventos de nível internacional que atraíram para Avaré, cartunistas dos Estados Unidos, Itália e Argentina.

Célebre pelos trabalhos de pesquisa e restauração, Nilva também foi uma apreciada pintora. Em 2000, por encomenda da prefeitura, criou o painel “Djanira, via angélica” para o memorial da artista em Avaré.

As suas obras mais recentes são pinturas internas sobre temas religiosos e litúrgicos para a Matriz de Águas de Santa Bárbara em estilo neo-Beuron, além de painéis feitos para decorar os aposentos usados por Bento XVI, no Mosteiro de São Bento, durante a visita do papa emérito a São Paulo, em 2007.

Por fim, as habilidosas mãos da artista cuidaram do restauro da estatueta centenária de Nossa Senhora venerada na Capela da Boa Morte, do Bairro Alto, doação da Família Imperial ao povo avareense.