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Inflação, depressão, recessão. Muitos “ãos” que você poderá ouvir nas próximas semanas. A nova rodada de sanções financeiras à Rússia pode levar o mundo de volta à recessão menos de dois anos após a contração da economia global resultante da pandemia de covid-19?

Analistas avaliam neste momento que não. Mas acreditam que as retaliações econômicas à invasão da Ucrânia por Vladimir Putin devem ter consequências negativas aos próprios países que estão impondo as sanções e à economia global como um todo. Sob forte estresse, o sistema financeiro russo pode não ser capaz de honrar suas obrigações e isso teria consequência sobre instituições financeiras de outros países, credores de dívidas russas.

Além disso, a nova rodada de sanções mantém a pressão sobre o preço de commodities como petróleo, gás natural, trigo e milho, com impacto adicional sobre uma inflação global que já vinha muito pressionada pelos efeitos da pandemia. Segundo Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, esse cenário pode levar os bancos centrais de todo o mundo a elevar juros de forma mais rápida, numa tentativa de conter uma escalada inflacionária.

Com mais juros, a economia global tende a crescer menos do que os 4% a 4,5% anteriormente esperados por organismos internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial. No Brasil, as exportações podem ser afetadas caso esse cenário todo resulte em um crescimento menor na China, avalia Vale.

E, com as pressões inflacionárias adicionais, o Banco Central do Brasil pode ser levado a elevar a Selic (taxa básica de juros da economia brasileira) acima dos 12,25% esperados atualmente, ampliando as chances de recessão em 2022 para um PIB que já era esperado próximo de zero. Entre as medidas estão a exclusão de bancos russos do sistema de transferências financeira internacionais Swift e o congelamento de boa parte das reservas do Banco Central da Rússia mantidas no exterior.

As sanções têm por objetivo levar a economia russa à recessão, pressionando a opinião pública contra a ação militar de Putin no país vizinho. Como consequência da nova leva de retaliações econômicas, o rublo russo desabou. Para conter a queda, a autoridade monetária russa elevou a taxa básica de juros local de 9,5% para 20%.

Diante do temor de restrições aos saques, filas se formaram em bancos e caixas eletrônicos na Rússia. O Banco Central Russo, no entanto, pediu calma e disse ter “os recursos necessários e ferramentas para manter a estabilidade financeira”. “As pessoas estão com muito mais medo. Já se fala que algumas empresas terão que reduzir o horário de trabalho ou até suspender a produção porque não conseguem acessar partes importantes do Ocidente devido a sanções ou limitações comerciais, então há uma grande preocupação nas ruas”, relata o analista.

Impactos das sanções

Banir os bancos russos do sistema de transferências internacionais Swift pode ter efeitos colaterais para empresas e instituições financeiras que têm dinheiro a receber de contrapartes russas. Em 2018, os Estados Unidos impuseram restrições ao uso do sistema Swift por bancos iranianos, mas tratava-se de uma economia muito menor do que a russa e, na ocasião, a medida enfrentou oposição de diversos governos europeus.

Vale lembrar que o Swift (Sociedade de Telecomunicações Financeiras Mundial) é um sistema bancário internacional, criado na Bélgica em 1973, que permite a padronização de informações financeiras e transferências de recursos entre bancos ao redor do mundo.

Apesar de a exclusão do sistema Swift provavelmente ter forte impacto para a Rússia, há um sistema alternativo chamado SPFS (sigla para Sistema para Transferência de Mensagens Financeiras), criado pela Rússia após a crise da Crimeia em 2014.

Inflação, economia mundial e Brasil

Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, o principal risco da “guerra econômica” contra a Rússia continua sendo o de uma maior pressão inflacionária que leve os bancos centrais de todo o mundo a uma alta de juros mais enérgica. “São sanções em cima de um país que tem um peso econômico frágil, mas que tem um peso em commodities relevante”, observa Vale.

No Brasil, os preços do trigo, milho já devem subir – isso sem falar dos combustíveis e do calcanhar de Aquiles – agrotóxicos, dos quais o país tem boa dependência Rússia.

O Brasil tem a perspectiva de pior crescimento econômico entre os países da América Latina para este ano, segundo a sondagem mais atual divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e o cenário pode se deteriorar ainda mais com a guerra na Ucrânia.

Caso perdure, o conflito no Leste Europeu, pode causar impacto direto no Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil ao longo de 2022. Entre as consequências à população estão a possibilidade de alta no preço dos alimentos, dos combustíveis e a instabilidade cambial.

Sondagem da FGV para o primeiro trimestre de 2022 constatou deterioração do clima econômico no Brasil. O indicador recuou 2,8 pontos, de 63,4 para 60,6 pontos no início deste ano, quando comparado com os últimos três meses de 2021. Com isso, o país acumula o menor índice entre as nações da América Latina, segundo a pesquisa que ouviu 160 especialistas espalhados em 15 países diferentes. Em relação à situação atual da economia, o Brasil registrou a pior queda entre o quarto trimestre de 2021 e o primeiro de 2022, saindo de 54,5 para 15,4 pontos. O país teve crescimento apenas em relação ao indicador de expectativas, que subiu 42,7 pontos e chegou a 115,4. Vale destacar que o desempenho é considerado positivo quando está acima dos 100 pontos.

Eleições

Além dos efeitos econômicos, o cenário politico brasileiro pré-eleições escancarou um festival de atrapalhadas cujos astros são os principais protagonistas das pesquisas: o presidente Jair Bolsonaro e o ex Lula da Silva. Na contramão mundial, Bolsonaro chegou a dar apoio a Putin em visita recente (antes da invasão), não admite a palavra ‘massacre’ para a guerra e insiste em manter a postura de “neutralidade” – ainda que demonstrando simpatia pelo presidente russo. Já Luiz Lula da Silva apareceu com o discurso pronto de pedir “paz” a líderes mundiais e ironizou viagem de Bolsonaro para encontro com Putin. Porém, Lula omitiu que  um fato extremamente criticado quando a bancada do PT no Senado apagou a nota onde se posicionava oficialmente sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e culpava os Estados Unidos pelo conflito. Em novo texto divulgado no site oficial, o partido mudou de posição e lamentou o suposto erro, afirmando que a publicação anterior se tratava apenas de uma sugestão de nota e que não refletia a opinião dos senadores petistas. No texto divulgado e assinado pelo senador Paulo Rocha (PT-PA), líder da bancada do PT, os parlamentares petistas afirmavam que os Estados Unidos eram responsáveis pelo conflito e que os americanos não aceitam uma Rússia forte e uma China que tende a superá-los economicamente. Vergonha no débito, crédito e pix.

 

Ex-KGB, czar e popular: quem é Putin ?

O homem que quer “fazer a Rússia great again”, ou grande novamente. Foi assim que a cientista política Valerie Sperling descreveu Vladimir Putin à EXAME em perfil publicado originalmente em 2017. No poder desde 2000, o presidente russo ganhou novamente os holofotes globais com suas investidas sobre a Ucrânia, uma ex-república da União Soviética (URSS) que decidiu pela independência em 1991.

Mas quem é Putin e por que seu interesse pela Ucrânia? O presidente russo chegou ao alto escalão da política do país nos anos 1990, ainda no governo Boris Yeltsin, e de lá nunca mais saiu. Desde então, Putin representa, para grande parte da população de seu país, aquele que estabilizou a Rússia após a queda da URSS e que não se curva aos interesses ocidentais. A tensão com a Ucrânia, que começou de fato com a anexação da Crimeia em 2014, é só um reflexo dessa visão de mundo.

“Ele não é um grande orador, não é um líder carismático, mas chega até o russo médio porque passa credibilidade. Ele representa o que muitos acreditam ser um poder necessário para resgatar a autoridade russa que foi perdida”, diz o historiador Sidney Ferreira Leite, especialista em Relações Internacionais.

Filho de uma operária e de um soldado da marinha que lutou na Segunda Guerra, o homem mais poderoso da Rússia cresceu num subúrbio de São Petersburgo, segunda maior cidade do país — chamada de Leningrado até 1991, herança da Revolução Russa de 1917. Nascido em 1952, foi criado como filho único, uma vez que os irmãos morreram ainda crianças.  Em 1975, então com 24 anos anos, entrou para o treinamento da KGB, o serviço secreto russo, logo após concluir o curso de Direito pela Universidade de Leningrado. Por seu alemão fluente, trabalhou para a KGB na Alemanha Oriental e viu de perto o início da queda do Muro de Berlim, em 1989.

O presidente conta que queimou documentos da KGB, na ocasião, para que opositores não os encontrassem. Putin permaneceria no serviço secreto até 1991. De volta a São Petersburgo, Putin se aproximou do então prefeito Mayor Sobchak. Em 1994, se tornou vice-prefeito da cidade — e seria o início de sua vida pública. Dois anos depois, já em Moscou, conheceu o alto escalão da política russa.

A escalada foi rápida. Passou a integrar a FSP, agência de inteligência que substituiu a KGB após o fim da URSS, foi nomeado diretor da instituição, logo depois garantiu o cargo de secretário do Conselho de Segurança e, em 1999, foi escolhido para ser primeiro-ministro do então presidente Boris Yeltsin, o primeiro líder eleito democraticamente após o fim da URSS.

Para muitos, boa parte da rápida ascensão de Putin se deve ao apoio de Yeltsin, e a relação dos dois é vista como controversa. Circulam rumores de que Putin, no comando da FSP, teria chantageado o procurador-geral russo, Yury Skuratov, para impedir que ele investigasse o envolvimento de Yeltsin em um esquema de propina. Por isso, Yeltsin é acusado de ter escolhido Putin para ser seu braço-direito apenas por acreditar que ele, no futuro, o protegeria novamente de outras investigações.

Ninguém pode dizer que Yeltsin não estava certo: talvez por herança dos treinamentos de KGB, Putin tem fama de ser extremamente leal com os amigos. Quando assumiu a presidência pela primeira vez, em 2000, perguntaram qual era seu colega mais digno de confiança. Ele citou cinco pessoas na ocasião e, quase duas décadas depois, todas elas ainda ocupavam cargos do alto escalão do governo.

 

O 11 de setembro russo – Yeltsin não só nomeou Putin como primeiro-ministro como anunciou que apostava nele para ser seu sucessor — e o seu pupilo, de fato, venceu as eleições do ano seguinte. Se hoje Vladimir Putin é o nome mais forte da política russa, na época ele era apenas um ex-espião da KGB praticamente desconhecido. Como conseguiu votos suficientes para se eleger presidente?

Sua popularidade cresceu logo no início do seu trabalho como premiê, graças a uma ofensiva militar que muitos estudiosos classificam como o “11 de setembro russo”.

No fim da década de 1990, quando o império soviético se desmantelava, um dos territórios em disputa era a Chechênia, que se proclamara independente em 1991. Para retomar o controle da região, Yeltsin iniciou a Primeira Guerra da Chechênia em 1994, e o embate terminou com uma derrota da Rússia.

Mas uma nova ofensiva russa liderada por Putin retomou o território. E a nova investida russa, mais dura, foi justificada por um atentado a um prédio residencial no centro de Moscou, que terminou com a morte de dezenas de russos. Segundo o governo, o ataque foi articulado pelos chechenos, mas, para os oposicionistas, Putin forjou o atentado para justificar a guerra e, de quebra, fortalecer seu nome no radar da política nacional. Uma jornalista e um ex-espião russo que tentaram investigar o caso apareceram mortos anos depois.

O fato é que o caso fez mesmo a popularidade de Putin crescer. Em dezembro de 1999, Yeltsin renunciou e Putin se tornou presidente interino. Em 2000, venceu as eleições logo no primeiro turno, com 53% dos votos. Agora, Putin está em seu quarto mandato como presidente (2000, 2004, 2012, 2018). Como a Constituição russa não permitia três mandatos seguidos, nas eleições de 2008, ele voltou a ser primeiro-ministro e apoiou Dmitry Medvedev — seu atual premiê e escolhido a dedo para substituí-lo na presidência até que ele pudesse retornar ao cargo em 2012. Na prática, é Putin quem manda no país há mais de 20 anos.

Durante a pandemia da covid-19, o presidente saiu também vencedor em um referendo que o permitirá seguir se elegendo até 2036. A votação foi questionada pela oposição. Embora Putin governe a Rússia há duas décadas, pouco se sabe sobre sua vida pessoal. Do casamento de 30 anos com Lyudmila Shkrebneva, de quem se divorciou em 2013, vieram duas filhas, cujas identidades são guardadas a sete chaves. De qualquer forma, Putin não é uma exceção entre os líderes russos, entre os quais a discrição é quase uma característica cultural. Mas a discrição não impede que a imagem pessoal de Putin seja explorada — e trabalhe a seu favor. Principalmente nos primeiros anos de mandato, circulavam fotos do presidente cavalgando sem camisa, praticando esportes ou caçando animais selvagens.

E esse é um dos fatores que o fazem reforçar a imagem de liderança e transmitir confiança aos russos. No artigo “Capitalismo, autocracia e masculinidades na Rússia”, a pesquisadora Tatiana Zhurzhenko estudou como Putin representa o típico homem soviético, o chamado muzhyk— independente, forte, trabalhador, patriota e leal.

Por vários parâmetros, a popularidade de Putin dentro da Rússia é inegável. Uma pesquisa deste ano do Levada Center, instituto russo independente e visto como confiável pela comunidade internacional, identificou que o presidente tinha quase 70% de aprovação. A aprovação já foi mais alta, superando até 80% em alguns momentos. A crise na Ucrânia, a princípio, o faz crescer. Em agosto de 2021, sua aprovação era menor, de 61%. Só um terço da população atualmente desaprova Putin.

 

Sem oposição – Para além de sua popularidade entre a população, o cerco à oposição também vem piorando nos últimos anos, deixando Putin sem concorrência na disputa pelo poder.

No começo, embora sempre controlador, Putin tentava administrar uma oposição relativamente plural. Mas, com o crescimento dos movimentos contrários ao seu governo, ele vem se tornando cada vez mais autoritário, controlando a imprensa, divulgando estatísticas estatais imprecisas e perseguindo inimigos políticos. O caso mais recente é do opositor Alexei Navalny, contra quem o Kremlin é acusado de ordenar um envenenamento.

Para conseguir manter sua popularidade alta, tem sido fundamental para Putin apostar na postura bélica. Para a pesquisadora Lilia Shevtsova, o presidente usa “um conflito político atrás do outro” para se “reenergizar” com o eleitorado, conforme explicou. E, sobretudo, para realçar sua principal força – a militar – para o resto do mundo. Longe do auge econômico soviético, a economia russa é hoje menor do que a do Brasil, e vive sobretudo de exportação de petróleo e gás.

Em sua escalada militar, o principal território de influência de Putin há alguns anos foi a Síria, com a Rússia oferecendo apoio ao ditador Bashar al-Assad e atuação relevante do país. “Se envolver com a Síria foi o jeito do Putin de voltar para a mesa”, disse Valerie Sperling, da Clark University, durante um dos auges da guerra em 2017. À distância, Putin também se tornou protagonista das disputas eleitorais americanas. Há acusações de que o Kremlin esteja por trás de ataques de hackers russos e manipulação por redes sociais, sobretudo nas eleições de 2016, vencidas por Donald Trump.

 

Estudo afirma que ‘é possível um mundo sem guerras’

Seria possível criar um sistema global de paz para abolir a guerra do planeta? Sim, de acordo com americano Douglas Fry, professor de antropologia da Universidade Åbo Akademi, na Finlândia. O pesquisador é um dos (raros) que concordam com a ideia de que o ser humano não foi feito para guerrear.

Em um artigo publicado na revista Science, Fry argumenta que basta seguir o exemplo de três sociedades plurais que nunca recorreram à guerra para resolver seus problemas internos. Para Fry, um dos fatores essenciais para um planeta pacífico é a construção de uma identidade abrangente, independente da nação. Isso já ocorre em menor escala com as 10 tribos que vivem na bacia norte do Rio Xingu, na Amazônia, com os índios norte-americanos da Confederação Iroquois e com a União Europeia.

A partir delas, seria possível destacar sete indicadores (como identidade social e governança abrangentes, interdependência e valores para a paz) que poderiam guiar políticas públicas para a criação de um sistema que garanta a paz no mundo.

Em quase todos os continentes é possível encontrar povos que conseguem viver pacificamente entre si. São grupos de sociedades vizinhas que não fazem guerra. O estudo da Science mostra em quais partes do mundo viver em paz já é possível, mesmo entre culturas completamente diferentes. “Esses exemplos não são utopia, eles representam agrupamentos do mundo real de sociedades distintas que vivem juntas sem recorrer à guerra e em um sistema de paz”, escreve o antropólogo. Fry sugere a construção de uma mentalidade ‘nós’ (Terra) contra ‘eles’ (qualquer coisa fora dela), para a manutenção da paz mundial.

Para esclarecer a criação de um sistema de paz mundial, o autor cita o 33º presidente dos Estados Unidos, Harry Truman. “Quando dois estados americanos disputam um recurso natural, eles não recorrem às suas polícias estaduais, mas à Suprema Corte do país”, escreveu. “Não existe uma única razão para que isso não seja feito em nível internacional.”

A conclusão do antropólogo flerta com alguns conceitos que normalmente são reforçados em discursos religiosos, e que agora ganham espaço nas páginas de uma revista científica. “Construir um sistema de paz para o planeta inteiro envolveria o entendimento de que a resolução dos desafios requer cooperação e um nível de identidade que inclui todos os seres humanos além do mero patriotismo.”

Quando você estiver lendo essa matéria esperamos que ela tenha sido apenas mais um registro de guerra já acabado, pois não há como fazer futurologia. Na prática, nos resta acreditar e rezar pelo fim de mais uma guerra. Um dia, quem sabe, teremos a Paz!

(Segunda parte da matéria de capa da edição 247)

(Fontes Wikipédia, Exame, UOL, G1, R7, BBC, NCS, Daniel Griswold, Portal de História, Cronologia das Guerras, CNN e Reuters)