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Num país marcado por polarizações, é certo que o assunto da linguagem neutra será a lenha da próxima fogueira das discussões. Antes de tudo, é preciso entender o que é exatamente essa linguagem.

Em poucas palavras, a linguagem neutra propõe a adoção de pronomes “não-binários” para representar pessoas que não se sentem abarcadas pelas categorias “tradicionais” (sem gênero, pangêneros, transexuais, travestis, intersexo, etc., ao todo já foram catalogadas 31 nomenclaturas de gênero pela Comissão de Nova York).

Por exemplo, sugere a substituição de “ele/ela” por “ilu”; “dele/dela” por “dilu”; “meu/minha”, por “mi/minhe”; “seu/sua” por “su/sue”; “aquele/aquela” por “aquelu” e “o/a” por “le”. No passado, o movimento já pleiteou a adoção do “x” ou da “@” no lugar das vogais de palavras que indicavam gênero com o mesmo propósito. Mas parece que essas últimas foram deixadas para trás.

De acordo com a reivindicação, essa “estratégia gramatical” seria uma ferramenta para efetivar a igualdade, garantir um “ambiente livre e democrático para a construção de identidades”, e representar minorias a partir da palavra. Não se poderia pretender uma língua “rígida e estática” – argumentam os defensores da linguagem neutra – diante de uma sociedade em transformação – o que é uma verdade, tendo em vista que a língua está em constante transformação.

A linguagem neutra de gênero seria uma forma de comunicação que procuraria então superar a binaridade entre feminino e masculino, usando para isso a neutralidade para se referir às pessoas. A linguagem binária de gênero — mesmo quando usamos a forma feminina e a masculina juntas — não é representativa para todas as pessoas, porque algumas não se identificam com os gêneros feminino e masculino.

Na língua portuguesa, além de não existirem alternativas neutras, por exemplo quando usamos pronomes pessoais na terceira pessoa (eles, elas), o gênero masculino é dominante em relação ao feminino. Por padrão, quando nos referimos a grupos de pessoas que incluem homens e mulheres, usamos a forma masculina. Usamos por padrão também formas masculinas para nos referirmos a pessoas de gênero desconhecido. Quando nos dirigimos a quem está lendo um texto, por exemplo, é comum usar “leitor”, “se você ficou interessado”, etc. Explicado o tema, vem a pergunta inevitável: na prática, isso impediria o preconceito? E na Educação, qual seria o impacto, considerando que o país está em último lugar no ranking de competitividade e investimento (educação pública, frise-se)?

Infelizmente, o assunto também politizou-se; governos proíbem o uso da linguagem até em projetos da Lei Rouanet, enquanto parte da imprensa e ativistas defendem sua implantação – tudo sem levar à questão à opinião pública, ouvindo todos os lados, sem exclusão. É preciso saber antes de tudo se as pessoas e o sistema estão prontos para isso. A própria Libras existe há muito tempo, mas só foi implantada recentemente e poucos profissionais e pessoas a dominam completamente (lembrando que o objetivo é a inclusão).Como os disléxicos, por exemplo, conseguiram assimilar estas mudanças, se já tem dificuldade de lidar com conteúdos atuais?

São muitas questões que precisam de respostas antes de qualquer imposição – seja ela de “direita” , “esquerda” por “lacração” ou não.  Da mesma forma que a discussão tem adeptos, também há críticos que questionam a necessidade de se fazer tal adaptação no vocabulário.

 

Inclusiva ou neutra – quais as diferenças?

É preciso enfatizar que existem diferenças importantes entre a linguagem inclusiva e a neutra.

Linguagem inclusiva

A linguagem inclusiva ou não sexista é uma forma de comunicação que buscar abranger todos os gêneros. Essa proposta utiliza artifícios que já existem na língua portuguesa para fazer isso, sem necessariamente alterar os vocábulos como os conhecemos.

Trata-se da simples utilização de “todos” e “todas” ao iniciar um discurso, por exemplo; ou, ao se endereçar para um grupo infantil, falar “meninos” e “meninas” com o objetivo de que todas as crianças presentes se sintam parte do destino daquela mensagem; ou ainda a substituição de “bem-vindo” e “bem-vinda” por “boas-vindas”.  Com base na definição de cada proposta, é fácil perceber que a linguagem inclusiva é muito mais fácil de adotar no discurso. A utilização de palavras que já fazem parte do nosso vocabulário torna o uso dessa linguagem uma forma clara de incentivar a inclusão de todos, mais especificamente o gênero feminino, que muitas vezes é excluído na forma como nos expressamos na língua portuguesa.

Isso não significa dizer necessariamente que o nosso idioma “é machista” – discussão que gera divisão até mesmo entre os linguistas. Porém, a nossa linguagem é reflexo da sociedade e principalmente do mensageiro, significando que o preconceito muitas vezes está exatamente na boca de quem fala.  Contudo, a comunidade LGBTQIA+ não se sente representada ao utilizarmos os pronomes “todos” e “todas”, motivo pelo qual a linguagem inclusiva é limitada nesse sentido.

Linguagem neutra

Já a linguagem neutra, também chamada de não binária, embora tenha o mesmo objetivo da proposta inclusiva, propõe a adição de novas palavras para alcançar esse alvo ao considerar que algumas vezes não conseguimos encontrar os recursos necessários na própria língua.

Se por um lado a linguagem inclusiva não abarca todos os gêneros de uma determinada sociedade, a proposta neutra faz exatamente isso ao mudar a forma como algumas palavras são construídas. Essa é a principal vantagem na utilização desse formato de expressão, motivo pelo qual é o adotado e preferido das comunidades minoritárias.

Contudo, do ponto de vista linguístico, a linguagem não binária é a que oferece maiores desafios para a mudança, especialmente por conta da transformação de algumas palavras de uso comum. Ao se referir a uma pessoa que se considera de gênero neutro, você não deveria dizer “ele/ela” ou “dele/dela”, mas adotar o padrão estabelecido para essa linguagem.

 

Pontos de vista diferentes

Ao apontarmos essas opiniões diferentes no uso das linguagens inclusiva e neutra, o objetivo não é dizer o que é certo ou errado. Porém, o fato é que todos e todas (ou “todes”, para os adeptos da linguagem não binária) deveríamos estar buscando diminuir as desigualdades existentes em nossa sociedade. Não por conta de algum tipo de ideologia, mas porque isso seria o certo a se fazer.

Contudo, embora tenhamos tentado utilizar esses tipos de linguagem no parágrafo acima, este texto adota o que é considerado como a norma-padrão na língua portuguesa para que todos (neutro) entendam. Quem estuda (ou não), sabe que a linguagem depende da comunicação.

“Um idioma não é algo estático. Os hábitos de comunicação que surgem e se enraízam na sociedade e seus discursos tendem a ganhar espaço, incorporando-se às “formas aceitas”. Não faz tanto tempo que não se admitia em textos escritos a forma “a gente”, equivalente a “nós”; hoje tal uso está devidamente incorporado, com a ressalva de que textos oficiais, mais protocolares, ainda repelem esse uso”, diz o professor Émerson Rossetti, um dos mais respeitados profissionais de Avaré, convidado pelo in Foco a explanar sobre o tema.

“Recentemente, a questão em pauta é o “gênero neutro”. E, com certeza (preferi utilizar as vírgulas, leitores!), tal discussão tem como gatilho o debate muito natural e necessário a respeito dos direitos das pessoas que não se identificam com os limites estreitos e estritos dos gêneros masculino e feminino. É bom lembrar que outras línguas apresentam casos em que há formas neutras – o próprio latim, do qual se originou a “última flor do Lácio”, serve como exemplo. Então, ainda que por outras razões, a relação entre o sexo e a língua (sem ambiguidades…) não é propriamente nova como muita gente pode pensar. Acontece que o português não herdou essa característica da língua-mãe, embora encontremos vocábulos que, a despeito de suas terminações, podem ser utilizados como masculinos ou femininos (a/ o cientista), em casos, inclusive, em que a palavra pode ter a mesma forma, mas com determinantes ou modificadores diferentes, o que lhes altera o significado: o cabra x a cabra/ o cabeça x a cabeça”, explica.

“Como defensor incondicional das causas ligadas a direitos humanos, tais como igualdade e respeito, penso que esses aspectos precisam, primeiro, alcançar visibilidade e tratamento adequado na vida real e prática. Pessoas são mortas, rejeitadas em determinados ambientes, desrespeitadas e vitimadas por preconceito, e isso não pode continuar porque é uma questão humana, que se refere à nossa condição de seres os quais, civilizados, precisam respeitar o que há de mais encantador na nossa espécie – as diferenças. Como professor de Português, não vejo necessidade de que haja um “terceiro gênero”, mesmo porque esse processo envolve questões muito além da escolha de palavras (como as estruturas morfossintáticas da oração, pois todas as palavras interligadas no contexto devem sofrer flexão, não somente um pronome ou um substantivo, por exemplo). Portanto, há uma grande cadeia que abarca, no mínimo, toda a Educação, quer como processo de aquisição de conhecimento, quer como sistema – além de toda a “reorganização” do idioma, naturalmente. Se serve de argumento, “guaraná”, “cinema” e “drama” terminam em “a”, mas são vocábulos masculinos; “comunhão” e “inspiração” acabam em “o”, entretanto são femininas; em “e”, temos “embuste” e “maturidade”, respectivamente masculino e feminino, apesar da terminação igual; o pronome relativo “que” e o reto “eles” podem se referir a ambos os gêneros (sem terminarem em “a” nem em “o”!)”, enfatiza Rossetti.

“Então, não considero que os elementos mórficos das palavras na determinação dos gêneros são discriminatórios. Penso que essa reivindicação de mudança que ganha voz atualmente decorre, isto sim, do mau tratamento que algumas pessoas recebem, dos banheiros que continuam restritos apenas aos dois sexos, das lojas que não aceitam “determinados” funcionários ou de algumas mídias que transformaram em caricaturas ridículas diferenças que são humanas e naturais – para citar apenas alguns exemplos”, finaliza.

Outra renomada profissional das Letras, Juliana Moreno Rutigliano, também abordou o assunto a pedido do in Foco. “A língua neutra é defendida por poucos que consideram a Língua Portuguesa machista e preconceituosa. Assim, esse grupo propõe mudança radical na norma culta. Considero essas alterações artificiais, inconvenientes e inconsistentes. Toda língua está sujeita a mudanças  advindas da necessidade de novas palavras para atender ao progresso ou de criações populares e pontuais  que, pela espontaneidade com que surgem estas últimas, conferem frescor e expressividade ao idioma. Você quer algo mais saboroso do que ‘sextou”. “panelaço”, “internetês”, “rolezinho”, “sofrência”,” teadorar” dentre outras expressões que surgem sem reformas e sem pedir licença? “, questiona, complementando: “ A tal língua neutra seria uma imposição que desvincularia nossa língua de suas origens, uma fissura na diacronia natural do idioma. Essa mudança só pode ser fruto de visões estrábicas de pessoas que não categorizam adequadamente o preconceito, fruto de visão estreita de mundo, nada tendo a ver com a instituição linguística. Assim a troca do “o” ou do “a” finais das palavras não extermina tabu algum. Além disso, há palavras na língua com “a ” final que são femininas, mas sem nenhuma conotação sexista como mesa, cadeira, lousa, caixa, salada e muitas outras. Assim, o gênero, na gramática, frequentemente nada tem a ver com atributo sexual”.

Para Juliana, uma possível alteração traria prejuízos. “Acho, ainda, que essa reforma traria severos problemas na aprendizagem, na comunicação diária e considerável prejuízo editorial. Enfim, eduquemos nossas crianças livres de preconceitos e deixemos que a nossa língua se altere devagar, conforme as necessidades reais de vocabulário ou ao sabor da gostosa criatividade popular”, finaliza.

 

A língua portuguesa é machista?

A língua é uma construção histórica e social, portanto, um reflexo da nossa sociedade. Desse modo, afirmar que “a língua é excludente porque é machista” é um erro; afinal, a língua em si não é machista, inclusive se formos analisar a origem do português, nas raízes latinas, saberemos que a marcação de gênero em nossa língua na realidade é feminina.

Nos primórdios, havia artigos neutro, masculino e feminino. No entanto, com o tempo, o neutro caiu em desuso, e isso aconteceu porque houve uma fusão entre masculino e neutro em nossa língua, por causa de semelhanças na estrutura morfossintática entre eles. Portanto:

Todos (neutro)

Todas (feminino)

Todos (masculino)

Analisando esse exemplo fica claro que a marcação de gênero ali é feminina (com o “a”), deixando claro, consequentemente, que a língua em si não é machista. Porém, existem dois fatores atrelados à nossa língua: um deles é o que se chama de “falso neutro” e o outro é o fator social. Alguns linguistas atestam que esse “neutro” do latim é falso, porque na verdade ele causa conflitos por ser muito similar ao masculino, o que acaba induzindo a uma confusão, gerando um reforço de estruturas patriarcais sociais na construção linguística. Um exemplo disso seria: quando falamos de profissionais da saúde de modo genérico, dizemos “médicos” (e não médicas); mas já, se vamos nos referir de modo geral a profissionais do ramo doméstico, usamos “empregadas” (e não empregados).

Enfim, considerando esse contexto, para especialistas, a língua é um reflexo da nossa sociedade, então apesar de ela não ser machista em si, ela pode sim refletir esse traço. “A pergunta que a gente tem que fazer é: a nossa sociedade é sexista? Se for, a língua vai refletir isso”  questiona Raquel Freitag, professora do Departamento de Letras Vernáculas na Universidade Federal de Sergipe e editora-chefe da Revista da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística), que não acredita em linguagem neutra. “Linguagem neutra é uma coisa que não existe. Não existe neutralidade, em nada no mundo”.  Inclusive, podemos aplicar essa linha de raciocínio a termos pejorativos, que também revelam aspectos da nossa sociedade. Quando cuidamos para não usar expressões como criado-mudo, nega-maluca, judiação e denegrir, mostramos nosso posicionamento diante do racismo, por exemplo.

Enfim, só precisamos ter consciência de que isso é um processo, ou seja, a sociedade muda e aí então a língua se modifica. Portanto, não podemos impor nada, para nenhum lado, mas sim entender que os seres humanos vão se desenvolvendo conforme suas necessidades e, nisso, podemos incluir com certeza as nuances da nossa língua.

(Fontes Jornal da USP, Guia do Estudante, G1, CNN e Conjur)